Introdução Com esta tese, pretendemos uma leitura do mais importante romance metaficcional já escrito na França, Jacques, o Fatalista, e seu Amo, de Denis Diderot. Mas ainda que sejamos aqui leitores de sua escrita, não faremos nenhuma descrição de sua literatura. Não entendemos a leitura como uma descrição da escrita para a consciência, porque não entendemos a escrita como algo outro que a sua descrição para a consciência. Que a escrita seja a sua própria descrição para a consciência, e que a escrita seja descrição de si mesma para a consciência de si enquanto descrição da própria consciência para si mesma, e toda leitura de toda e qualquer escrita revela-se à consciência, ela mesma, escrita de sua leitura. Mais que meramente descrever a escrita de Diderot como se fosse algo outro que a sua descrição para a consciência que lê, mais que buscar sua literatura na leitura de sua escrita, encontraremos sua literatura na escrita de sua leitura, na descrição do que escreve a consciência que lê ao descrever para si mesma a própria escrita de Diderot – na consciência que se torna consciente de si ao descrever a leitura que a própria escrita faz de si mesma enquanto consciência que lê na escrita a própria descrição da consciência de sua leitura. A escrita que faz a escrita de sua própria leitura é a escrita que se torna consciente de si mesma enquanto o seu leitor levanta a cabeça: Nunca lhe aconteceu, ao ler um livro, interromper com frequência a leitura, não por desinteresse, mas, ao contrário, por afluxo de ideias, excitações, associações? Numa palavra, nunca lhe aconteceu ler levantando a cabeça?É essa leitura, ao mesmo tempo irrespeitosa, pois que corta o texto, e apaixonada, pois que a ele volta e dele se nutre, que tentei escrever. Para escrevê-la, para que a minha leitura se torne por sua vez objeto de uma nova leitura (a dos leitores de S/Z), tive evidentemente que sistematizar todos esses momentos em que a gente “levanta a cabeça”.(…)(…) O que é então S/Z? Simplesmente um texto, esse texto que escrevemos em nossa cabeça quando a levantamos.Esse texto, que se deveria chamar com uma só palavra: texto-leitura, é muito mal conhecido porque faz séculos que nos interessamos demasiadamente pelo autor e nada pelo leitor; a maioria das teorias críticas procura explicar por que o autor escreveu a sua obra, segundo que pulsões, que injunções, que limites. (…) o autor é considerado o proprietário eterno de sua obra, e nós, seus leitores, simples usufrutuários; essa economia implica evidentemente um tema de autoridade: o autor tem, assim se pensa, direitos sobre o leitor, constrange-o determinado sentido da obra, e esse sentido é, evidentemente, o sentido certo, o verdadeiro; daí uma moral crítica do sentido correto (e da falta dele, o “contra-senso”): procura-se estabelecer o que o autor quis dizer, e de modo algum o que o leitor entende. Tal arcaica pretensão à leitura da escrita em si mesma, da escrita que existiria em si mesma independentemente da consciência de sua leitura, é a mesma pretensão positivista a um conhecimento puramente objetivo de alguma coisa em si, daqueles que, outrora iludidos em seu sonho dogmático, acreditavam ver o mundo independentemente dos olhos que seu mundo viam. Caduco o velho positivismo, caduca com ele toda pretensão a uma “ciência da literatura” que objetivamente pensava ver na escrita aquilo que a escrita seria em si mesma independentemente de sua leitura. Que tenhamos encontrado a palavra na própria consciência da sua leitura, encontramos finalmente toda escrita na sua leitura, onde toda leitura se revela ela mesma escrita da descrição que a consciência que lê faz para si mesma de sua leitura. Com Barthes, despertamos do positivista sonho dogmático dos “cientistas da literatura”, e redescobrimos a literatura no seu mais imediato lugar de gênese, não na pena de seu autor, mas na consciência do leitor – e levantamos a cabeça, levantamos a cabeça onde a leitura finalmente começa a escrever a si mesma e onde a escrita finalmente se revela em seu lugar criador, em seu lugar de gênese que não poderia ser nenhum outro que o lugar de sua consciência aqui e agora, onde a palavra é sempre consciência de sua leitura e onde a escrita então pensa a si mesma, neste lugar onde a própria escrita levanta a cabeça, espontaneamente desperta e se torna ela mesma consciência de sua própria leitura. Embora certos autores nos tenham advertido de que éramos livres para ler seu texto como bem entendêssemos e que em suma eles se desinteressavam de nossa escolha (Valéry), percebemos mal, ainda, até que ponto a lógica da leitura é diferente das regras da composição. Estas, herdadas da retórica, sempre passam por referir-se a um modelo dedutivo, ou seja, racional; trata-se, como no silogismo, de constranger o leitor a um sentido ou a uma saída: a composição canaliza; a leitura, pelo contrário (esse texto que escrevemos em nós quando lemos), dispersa, dissemina; ou, pelo menos, diante de uma história (…), vemos bem que certa imposição do prosseguimento (do “suspense”) luta continuamente em nós com a força explosiva do texto, sua energia digressiva: à lógica da razão (que faz com que esta história seja legível) entremescla-se uma lógica do símbolo. Essa lógica não é dedutiva, mas associativa: associa ao texto material (a cada uma de suas frases) outras ideias, outras imagens, outras significações. “O texto, apenas o texto”, dizem-nos, mas, apenas o texto, isso não existe: há imediatamente nesta novela, neste romance, neste poema que estou lendo, um suplemento de sentido de que nem o dicionário nem a gramática podem dar conta. Que o texto não seja jamais apenas o texto, e que a escrita não seja jamais apenas a escrita, mas sempre o texto que escreve a consciência que o lê ao descrever para si mesma a escrita de sua leitura, e reconhecemos o lugar do seu mais profundo leitor não nas deduções de alguma “ciência da literatura”, mas nas associações da literatura que finalmente reconhece a si mesma como
Play
Pause