Introdução
Nesta dissertação, pretendemos fazer uma análise de O Estrangeiro e A Morte Feliz. Analisar a literatura de Camus, entretanto, será mais que analisar a obra do artista. Por todos os seus romances, por toda a obra do artista mostram-se os conceitos do filósofo Albert Camus. Analisar a obra do artista, assim, será analisar a obra do filósofo, quando
vemos, nas linhas de seus romances, o conceito por trás da metáfora.
Enquanto os principais conceitos da filosofia camusiana definem a relação do homem com o mundo e o destino, é na vivência literária de suas personagens diante do mundo e do destino que seus conceitos filosóficos são descritos com total clareza.
Camus não foi o primeiro filósofo a descrever sua filosofia em forma literária. Como Platão em seus diálogos e Nietzsche no seu Assim Falou Zaratustra, Camus trabalhou os conceitos de sua filosofia em prosa poética, não apenas em O Mito de Sísifo e O Homem Revoltado, mas também em seus romances. Nos diálogos platônicos, a filosofia de
Platão está encarnada na figura de Sócrates, em sua postura, em suas ações e em suas palavras. Também o Zaratustra de Nietzsche é inseparável de sua filosofia. Não se pode compreender a filosofia de Platão sem compreender a figura de Sócrates, assim como não se pode compreender a filosofia de Nietzsche sem o seu Zaratustra. Ambos adotaram um avatar para suas filosofias imortais, uma figura viva que encarna seus conceitos e visão de mundo por inteiro. Camus fez o mesmo. No Meursault de O Estrangeiro estão todos os 10 principais conceitos de sua filosofia. À luz dos outros romances e obras do autor, em especial à luz de A Morte Feliz, Noces, O Avesso e o Direito e O Mito de Sísifo, descobrimos em O Estrangeiro ainda mais do que um dos mais belos romances da história da literatura ocidental: descobrimos a filosofia de Camus, encarnada na figura de Meursault, em sua postura, em suas ações e em suas palavras. Meursault não é apenas o protagonista de um dos maiores romances já escritos, mas é também o principal avatar da filosofia camusiana. É indispensável compreender quem é Meursault para que se possa compreender a filosofia de Camus, assim como é indispensável compreender quem é Zaratustra para que se possa compreender a filosofia de Nietzsche. Da mesma forma, é somente a partir dos conceitos da filosofia camusiana que podemos ler O Estrangeiro e A
Morte Feliz com total clareza. A literatura de Camus é inseparável de sua filosofia e sua filosofia é inseparável de sua literatura.
Nesta dissertação, pretendemos analisar a filosofia de Camus em O Estrangeiro e A Morte Feliz. Nossos objetos principais serão os conceitos de eterno presente, terna indiferença, abertura ao mundo, amor ao mundo e amor ao destino, delimitados e demonstrados em O Estrangeiro e A Morte Feliz através de análise comparativa com trechos de outras obras do autor. Para a delimitação e demonstração destes conceitos, será decisivo o concurso de seis dos maiores estudiosos da filosofia de Camus: Jean-Paul Sartre, Pierre Nguyen-Van-Huy, Jean Onimus, Brian T. Fitch, Pierre Sauvage e Étienne Barilier. Entretanto, o objetivo de nossa dissertação está além da mera demonstração da filosofia de Camus em O Estrangeiro e A Morte Feliz: nossa dissertação estabelecerá o lugar da filosofia de Camus na Tradição Filosófica, esclarecendo os conceitos de O Estrangeiro e A Morte Feliz em sua gênese.
Nosso primeiro objeto será o eterno presente em O Estrangeiro. Este conceito foi demonstrado pela primeira vez por Sartre em 1943, na sua interpretação de O Estrangeiro em L’homme et les Choses. Entretanto, Sartre não foi além da demonstração, e a questão acerca da gênese do eterno presente na Tradição Filosófica permaneceu sem resposta – como havia permanecido sem resposta até hoje. Toda esta dissertação pretenderá responder a questão acerca da gênese do eterno presente na Tradição Filosófica – mas para respondê-la, será preciso analisar e demonstrar os outros principais conceitos da filosofia de Camus, bem como remetêlos ao seu lugar preciso na Tradição. Por isso, a questão acerca da gênese do eterno presente só poderá ser respondida no último capítulo.
No primeiro capítulo, demonstraremos o conceito camusiano de amor ao destino, encarnado na figura de Meursault e em sua terna indiferença. Os conceitos de amor ao destino e terna indiferença, na obra de Camus, se mostrarão inseparáveis do conceito de eterno presente. Compreenderemos então que responder a questão acerca da gênese do eterno presente camusiano será buscar pelo lugar do amor ao destino e da terna indiferença de Meursault na Tradição Filosófica. Para tanto, será necessária uma analítica minuciosa da obra de Camus que excederá as páginas de O Estrangeiro e nos levará, no segundo capítulo, para A Morte Feliz e outras obras do autor. A analítica de A Morte Feliz será decisiva. Em A Morte Feliz, encontraremos em primeiro plano dois conceitos camusianos que, em O Estrangeiro, estão em um plano secundário: os conceitos de amor ao mundo e abertura ao mundo.
No segundo capítulo, por análise comparativa de A Morte Feliz, O Avesso e o Direito, Noces e O Mito de Sísifo, ficará claro que os conceitos de amor ao mundo e abertura ao mundo são inseparáveis dos conceitos de amor ao destino e terna indiferença. Investigaremos, então, como estes conceitos se relacionam entre si na filosofia de Camus. Entretanto, a questão acerca da gênese destes conceitos permanecerá ainda sem resposta no segundo capítulo.
O terceiro capítulo será um capítulo de síntese do segundo, onde centralizaremos a relação entre os conceitos camusianos de amor ao destino, terna indiferença, amor ao mundo e abertura ao mundo em torno dos trechos que descrevem a morte da personagem Zagreus em A Morte Feliz. Com uma nova análise da relação entre estes conceitos, esclareceremos o conceito camusiano de absurdo.
No quarto capítulo, analisaremos uma nova questão, inevitável após a leitura de A Morte Feliz: haveria alguma relação entre a personagem Zagreus de A Morte Feliz e o mito de Dioniso Zagreus? No quarto capítulo, estabeleceremos a relação das personagens Zagreus e Lucienne Raynal de A Morte Feliz com o mito de Dioniso Zagreus. Estudaremos o mito de Dioniso Zagreus na interpretação de Junito de Souza Brandão, Carl Kerényi, Gilbert Murray, Henri Jeanmaire, Nathalie Mahé, Walter Burkert e Mario Meunier para chegarmos, finalmente, às imagens de Nietzsche em O Nascimento da Tragédia, imagens muito semelhantes às imagens de Camus para a tragédia de A Morte Feliz.
No quinto capítulo, analisaremos as imagens de Nietzsche para a tragédia dionisíaca em O Nascimento da Tragédia. Analisaremos o conceito nietzschiano de dionisíaco em sua relação com o conceito nietzschiano de amor fati (amor ao destino) a partir da obra de Daniel Lins, Rosa Maria Dias, Maria Helena Lisboa da Cunha, Roberto Machado, Nathalie Mahé, Miguel Angel de Barrenechea, Gilles Deleuze e Claudia Drucker. Paralelamente à análise dos conceitos nietzschianos de dionisíaco e amor fati (amor ao destino), aprofundaremos nosso estudo sobre o mito de Dioniso Zagreus através das obras de Marcel Detienne e Walter F. Otto para finalmente demonstrar a gênese dos conceitos camusianos de amor ao destino, terna indiferença, amor ao mundo e abertura ao mundo a partir do mito de Dioniso Zagreus. E ainda, através de análise comparativa destes quatro conceitos camusianos com os conceitos nietzschianos de dionisíaco e amor fati (amor ao destino), a filosofia camusiana, sintetizada na morte da personagem Zagreus em A Morte Feliz, revelará seu lugar de gênese no mito de Dioniso Zagreus segundo o compreendeu Nietzsche.
Estabelecido o lugar de gênese dos conceitos camusianos de amor ao destino, terna indiferença, amor ao mundo e abertura ao mundo na Tradição Filosófica, ainda no final do quinto capítulo a gênese do conceito de eterno presente ainda não terá sido demonstrada com clareza suficiente. Este será o objetivo de nosso último capítulo.
No sexto e último capítulo, para demonstrar o lugar de gênese do eterno presente camusiano com o máximo de clareza, faremos um estudo do mais elevado conceito da filosofia de Nietzsche. Para o êxito final de nossa pesquisa e para uma resposta definitiva à questão acerca do lugar de gênese da filosofia de Camus na Tradição Filosófica, estudaremos o conceito nietzschiano de eterno retorno à luz da interpretação de Martin Heidegger, Marco Antônio Casanova e Miguel Angel de Barrenechea.
Na ordem e na progressão da pesquisa, esta dissertação cumpre um objetivo diferente em cada um de seus seis capítulos. Mas estes seis objetivos são meramente secundários, posto que o objetivo primário do nosso trabalho é apenas um: demonstrar que Camus, filósofo nietzschiano, teve no dionisíaco, no amor fati e no eterno retorno de Nietzsche a
principal base para a criação de sua filosofia em O Estrangeiro e A Morte Feliz.
Apesar de todos os seis capítulos desta dissertação, a profunda influência de Nietzsche na obra de Camus pode ser demonstrada apenas fazendo-se referência ao Discours de Suède. Em 10 de dezembro de 1957, Camus recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. No discurso proferido em seu momento de glória máxima, Camus sentia-se tão profundamente grato que avaliava a que ponto a recompensa ultrapassava seus méritos pessoais:
“Ao receber a distinção com a qual vossa livre Academia quis me honrar, minha gratidão era tão profunda que eu avaliava a que ponto esta recompensa ultrapassava meus méritos pessoais.
(…)
(…)
(…) A meus olhos, a arte não é um deleite solitário. Ela é um meio de comover o maior número possível de homens, oferecendo-lhes uma imagem privilegiada dos sofrimentos e das alegrias comuns. Portanto ela obriga o artista a não se isolar; ela o submete à verdade mais humilde e mais universal. E aquele que, frequentemente, escolheu seu destino de artista porque se sentia diferente, aprende bem rápido que só nutrirá sua arte, e sua diferença, confessando sua semelhança com todos. O artista se constrói neste perpétuo ir e vir de si aos outros, a meio caminho entre a beleza que ele não pode perder e a comunidade da qual não pode se separar. É por isso que os verdadeiros artistas não desprezam nada; eles se obrigam a compreender em vez de julgar. E, se eles têm um partido a tomar neste mundo, este não pode ser senão aquele de uma sociedade onde, segundo a grande palavra de Nietzsche, não reinará mais o juiz, mas o criador, quer seja ele trabalhador ou intelectual.”
No seu momento de glória máxima, reinava o criador, reinava o criador de Nietzsche: Camus chegava à glória do mundo como artista e como criador sob os auspícios de Nietzsche. Em todo o seu discurso de aceitação do Prêmio, ao exprimir sua profunda gratidão, Camus cita apenas um nome, um único nome: ele define o que significa ser um verdadeiro artista citando a grande palavra de Nietzsche, a palavra do criador dionisíaco que nada despreza e tudo afirma, a palavra do criador que diz eternamente Sim a todas as coisas, afirmando incondicionalmente o mundo e o destino. Consagrado pelo mundo como um verdadeiro artista, ele define o que significa ser um verdadeiro artista citando a Filosofia de Nietzsche, ele define a si mesmo pela Filosofia de Nietzsche, declarando ao mundo quem fez dele o que ele é. Camus sabia a quem devia o triunfo de sua arte, o triunfo de sua arte criada a partir da Filosofia de Nietzsche: em seu momento de glória máxima, ele trouxe consigo um único nome, ele trouxe consigo o nome de seu maior Mestre…
Por: Daniel Malafaia (Frater V)